Atualizado por último em dezembro de 2022
Advogada sênior na Zilveti Advogados
Um instituto muito conhecido, porém, muito polêmico no Direito brasileiro é o bem de família, que torna impenhorável, salvo exceções, o imóvel único pertencente ao devedor ou aquele utilizado para sua residência. O objetivo de tal impenhorabilidade, que engloba os bens móveis contidos na residência, é a preservação do lar e, consequentemente, da dignidade da pessoa humana.
Porém, ainda que seja algo que aparenta ser simples, o instituto traz algumas divergências que, constantemente, acabam por serem resolvidas no âmbito do Poder Judiciário. Um exemplo de polêmica, que ganhou novos contornos recentemente, diz respeito à possibilidade (ou não) de enquadramento de imóvel em construção como bem de família.
Apesar de existir uma divergência sobre o assunto, prevalecia nos tribunais o entendimento de que imóveis em construção não podiam ser considerados bem de família. O entendimento era com base, principalmente, no argumento de que imóveis em construção não são utilizados como residência, certamente existindo outro local em que a pessoa reside. Também era comum a utilização do argumento de que o que é penhorado, nestes casos, é o lote de terreno que, obviamente, não possui o condão de prestar-se como residência.
Porém, em outubro do ano corrente (2022), a Quarta Turma do Superior Tribunal de Justiça decidiu por dar um novo contorno à controvérsia, ao cassar acórdão do Tribunal de Justiça de São Paulo, que afastou a possibilidade de caracterização de bem de família de um imóvel em construção.
Tal decisão, apesar de contrariar entendimento que prevalecia até então, não pode ser considerada uma completa surpresa. Já havia, por parte dos magistrados, uma tendência a flexibilizar o conceito do “imóvel residencial próprio do casal, ou da entidade familiar”, previsto no artigo 1º da Lei nº 8.009/90, que dispõe sobre a impenhorabilidade do bem de família. Eram comuns decisões que reconheciam a existência do denominado bem de família indireto, ou seja, aqueles imóveis únicos de propriedade do devedor locados para terceiros, culminando, inclusive, em edição da súmula 486 do STJ, que consolida tal regra.
Neste sentido, e caminhando nesta tendência, o colegiado defendeu que, não obstante o devedor não residir no único imóvel de sua propriedade, por estar este em fase de obras, por si só, não impede sua classificação como bem de família.
Em decisão de Primeiro Grau, mantida pelo Tribunal de Justiça, foi determinada a não caracterização do imóvel como bem de família, autorizando sua penhora. O argumento utilizado foi justamente o fato de que, para o imóvel usufruir da proteção da Lei 8.009/1990, este deve servir como residência, condição não verificada quando estamos diante de um campo de obras.
Em julgamento de recurso especial, o Ministro Relator Marco Buzzi defendeu que a finalidade da Lei nº 8.009/1990 é justamente proteger a entidade familiar, fundamentando que "as hipóteses permissivas da penhora do bem de família devem receber interpretação restritiva". Expressando tal entendimento, o Relator afirmou que a impenhorabilidade deve ser tratada como regra, e não exceção.
O entendimento possui um viés interessante, pois é indiscutível que, no artigo da lei, o requisito de moradia é essencial para a caracterização de bem de família de um imóvel. Contudo, os Ministros entenderam prevalecer sob tal requisito o amparo aos direitos fundamentais do devedor. O Relator, em sua exposição, afirmou que "a impenhorabilidade do bem de família busca amparar direitos fundamentais, tais como a dignidade da pessoa humana e a moradia, os quais devem funcionar como vetores axiológicos do nosso ordenamento jurídico".
Seguindo na mesma linha, houve, por parte do Relator, menção ao julgamento de recurso efetuado pela mesma corte, em sua Terceira Turma, oportunidade que se definiu que o fato de o imóvel não ser edificado não possui o condão de impedir, por si só, sua qualificação como bem de família, caso demonstrada a finalidade do futuro imóvel de ser utilizado como residência da família.
Tal entendimento, portanto, vem como mais um importante reforço a fim de flexibilizar a proteção garantida à dignidade do devedor. É inegável a dicotomia presente na discussão, pois claramente temos, do outro lado, o credor agindo em exercício regular de seu direito e que, evidentemente, possui o direito de ver satisfeita a dívida. Porém, o entendimento defendido na ocasião torna-se um reforço a demais princípios que resguardam o devedor, tais como o da menor onerosidade da execução ou o da menor gravosidade ao executado, mostrando a necessidade de humanização deste procedimento que, inevitavelmente, gera impactos ao devedor.
Outro impacto relevante é que, diante deste entendimento, o devedor fica apto a investir em imóvel próprio com segurança, sem o risco de ver seu patrimônio utilizado para a satisfação de dívidas, ainda que pretéritas. Resta, assim, ao Poder Judiciário, atentar-se a tais características, cuidando, contudo, para evitar a configuração de eventual fraude à execução ou práticas temerárias do devedor, que utilize deste entendimento exclusivamente para lesar seu credor.
Marcela Ruiz Cavallo é profissional com formação em Direito com Especialização em Direito Empresarial pela Universidade Presbiteriana Mackenzie. Atualmente é advogada sênior na Zilveti Advogados e coordenadora da área de contencioso cível do escritório.
*O conteúdo expresso neste texto não necessariamente reflete a opinião da Brain Inteligência Estratégica.